sábado, 24 de dezembro de 2016

O Belo, a Experiência da Unicidade

Dragosh Kalazhich
Deus é invisível porque ele é imensuravelmente manifesto.
– São Dionísio, o Areopagita

Em um texto anterior sobre linguagem, tendo discutido acerca do ser e da natureza, a phýsis, pudemos mergulhar na harmonia fluida intrínseca à natureza que permeia todas as coisas, sendo ela o fundamento de todas elas juntas e fundidas num mesmo ser. Agora temos o interesse de discutir outros conceitos e aspectos da mesma natureza, sobretudo a beleza.

O mundo moderno é uma negação da beleza; ele nos apresenta o espetáculo, o show de luzes, um simulacro invertido do belo. E, captando as atenções do público, transforma para ele o que é belo em feio e o que é feio em belo. Vejamos mais de perto como isto acontece:

O espetáculo é uma arte, uma tekhnê, por isso sua essência consiste na separação, na abstração. A arte é um recorte e um isolamento de uma parte da natureza indivisível. O espetáculo é assim um mosaico de formas abstratas que, não cooperando com a fluidez natural, se opõe a ela, buscando permanecer íntegro e intocável no interior do ser como algo alheio a ele. Com isto, cria-se “o outro”, algo que no seio dos fenômenos se apresenta como diferente, mesmo não sendo (uma vez que o recorte é feito sobre a natureza ela mesma). Então surge uma divisão no interior da natureza, cisão que é abstrata porém partícipe da economia dos fenômenos, e por isso mesmo influente – pois, sendo um simulacro, é uma imagem que falseia o real para aqueles que estão dentro (como os homens, que estão dentro da natureza e enxergam tanto a phýsis quanto a tekhnê).

Fundamentalmente falando, tudo é phýsis. A tekhnê é só um simulacro feito a partir da própria phýsis, um simulacro que busca contorcer e destruir a natureza da qual ele provém; é algo que pretende fazer do produto da natureza algo que não está permitido em seu logos, tal como o diabo busca construir o mal dentro da criação divina, produto do bem supremo. Embora este seja um esforço originariamente fracassado, ele é capaz de captar as atenções de fenômenos partícipes e irmãos na economia do ser, fazendo-se passar como algo subsistente e de realidade própria (por ser “o outro”, por ter construído assim uma individualidade abstrata), e assim enganá-los, estabelecer-se como “o verdadeiro” em oposição à natureza, que, por calar-se, passa ela a ser “a outra” e o falso. Mas de que modo ocorre este movimento?

Primeiro vimos que a arte surge como “o outro” e neste movimento ela se individualiza; na medida em que surge, aparece como um indivíduo, um átomo (a-tomo: indivisível). Imitando a totalidade indivisível da natureza, a arte se faz uma parte indivisível, pelo menos na sua relação com os entes no interior do ser – uma vez que na totalidade ela não tem subsistência própria, mas desaparece no todo como qualquer ente. Mas ao aparecer assim aos ente ela torna a experiência deles, que antes era imediata como acontece em toda totalidade uma, agora mediada por um “outro” que toma o papel de representar algo que é a priori dado. O espetáculo se põe entre os fenômenos como a representação do ser fundamental e originário que acontece unicamente na experiência imediata, na presença do ser por parte dos fenômenos que se relacionam fluidamente. A arte, assim, corta esta relação fluida e imediata, rompe a naturalidade da natureza, criando no seio indissoluto um simulacro que consiste na cisão entre coisa e representação, entre sujeito e objeto, entre sujeito e predicado; e esta cisão é o germe da individualização ou atomização de todo o ser, uma atomização que jamais alcança um fim porque se desenrola na infinitude do ser.

Antes da arte, os fenômenos experimentavam a totalidade do ser em si mesmos e o si mesmo no mundo, sem distinção entre eu e mundo. Agora, o ser é experimentado a partir da sua representação, o que é o mesmo que não ser experimentado. Uma vez que o fenômeno é uma fantasia (uma aparição) do todo, ele não pode experimentar sua existência senão na imediatez com o todo, jamais através de representações. E uma vez surgida a representação e com ela a cisão, abre-se um movimento decadente e interminável de representar e dividir, a fim de apreender o ser já não mais apreendido – todavia, este movimento, baseado num impulso de espelhamento do real (especulação vem daí), ao invés de trazer o ser para mais próximo da experiência, limita e impede cada vez mais este encontro, constrói barreiras cada vez mais intransponíveis. E isto explica o movimento de constante complexificação na história ocidental desempenhado pela linguagem, pela filosofia e pelas ciências em geral, incluindo a teologia, complexificação acompanhada do esvaziamento de sentido do ser ele mesmo. Pois, após a cisão entre sujeito e objeto, como seria possível reuni-los novamente se todo instrumento para tal desempenha o papel da arte e nela está inserido? Como seria possível reunir ser e fenômeno através de um ato representativo do ser se é este mesmo ato que se põe entre os dois polos? Este ato é semelhante ao da mulher intelectual, destituída do erotismo ao longo da vida, “castrada”, que busca resgatar a experiência sexual mais íntima e intensa através de palavras elogiosas e falsamente festivas, teatrais. Ao invés de excitar, ela espanta; mas é tudo o que ela sabe fazer e pode fazer sob o domínio da arte, que tomou sua mente passiva.

A Feiura

Esta cisão, uma desidentificação (um desencontro) entre os fenômenos e a consequente sensação de estranheza, de “não pertencimento” à representação, é a feiura. A feiura é esta falta de harmonia na economia do ser, que todavia é relativa à experiência dos fenômenos, não da totalidade do ser consigo mesma, que é imutável. Quando o homem, por exemplo, sente a feiura do mundo, é porque está enclausurado em si mesmo (por motivos variados, nem sempre é culpa sua), incapaz de se projetar para fora de si e assim encontrar-se com os demais fenômenos. Esta incapacidade se deve a uma desorientação na experiência do homem com o mundo, ora porque o ambiente no qual está o homem é desordenado pela abstração, ora porque o homem foi confundido por conceitualizações, ora ambos. E isto traz angústia, a sensação íntima de que algo está errado e perdido, um vazio; é quando o homem se questiona “por que há ser e não o nada?”, tendo ele perdido a experiência do ser sem, contudo, ter encontrado o nada. E aqui nasce a filosofia, a busca pelo fundamento perdido.

A percepção da beleza é uma experiência mística. Ninguém pode dizer que percebeu a beleza de um objeto externo a si sem ter sentido uma identificação com ele. A beleza não é um traço particular acidental que enxergamos nos objetos; ela não é azul nem verde, nem suave nem dura, e ao mesmo tempo ela pode se manifestar com todas essas características ou simplesmente não se manifestar nelas. A beleza não tem objetividade. Mas tampouco tem subjetividade: a beleza não é algo aleatório cuja percepção varia conforme o sujeito; todos são capazes de percebê-la, assim como são capazes de perceber a feiura. Por exemplo, por mais que o conceito de beleza tenha se alterado consideravelmente com o advento da modernidade, ninguém está autorizado a dizer que o mundo moderno e a arte moderna são belos – seus defensores, eles mesmos, alegam que a modernidade traz conforto, direitos etc., mas ninguém se arrisca seriamente a defender que ela é bela; pelo contrário, os argumentos mais costumeiros tendem a questionar a beleza enquanto princípio civilizacional. Mas onde está então a beleza?

Disso extraímos, primeiramente, que a beleza não pode ser considerada um fenômeno meramente estético. Isto seria defini-la como objetiva e/ou subjetiva ao passo que ela não pode ser nenhum dos dois. A beleza envolve algo do sujeito que não se restringe à experiência empírica. Notar o belo em algo é conhecê-lo, e conhecer é o tipo de contato mais íntimo entre dois polos; como poderia, então, se tratar de uma mera reunião entre sujeito e objeto, quando ambos os polos estão eternamente separados? Como se poderia conhecer algo sem pertencer a um mesmo com ele, e como se poderia pertencer a este mesmo dentro do paradigma do sujeito-objeto, baseado na representatividade do ser e, portanto, na atomização dos entes? Se os entes forem átomos, não pode haver nada que os conecte, pois cada um seria um universo fechado. Como, então, é possível que experimentamos o belo nas coisas, sem que isto seja uma mera observação das qualidades acidentais do objeto?

A própria possibilidade de experimentarmos o belo é uma prova de que não somos átomos, mas estamos intrinsecamente conectados com algo de invisível, imprevisível e misterioso que permeia o mundo como um todo. É misterioso, contudo, a nós, modernos, que perdemos o sentido, a sabedoria antiga, sobre este todo. Para os antigos, não havia o espanto da existência, eles possuíam uma tranquila certeza do nascimento à morte; nós, modernos, é que somos cheios de dúvidas existenciais. Não obstante, o homem moderno que começa a duvidar é o que se encaminha rumo à certeza dos antigos – o resto, embriagado no cotidiano dos outdoors, festas etc., ainda sonha com uma certeza sobre o mundo que jamais possuiu, e esta certeza será posta à prova algum dia, geralmente com alguma grande tragédia que rompe a “ordem” normal da vida cotidiana. A experiência do belo é intrínseca à certeza sábia da fluidez e simultânea permanência da totalidade do ser. É o “estar em casa” daquele que se identifica com o ser, pois a morada dos fenômenos será sempre a totalidade indivisível do ser. Perceber isto, isto é, conhecer, é experimentar a presença do belo, que é a total harmonia de todas as coisas (o reflexo cognitivo das relações mútuas da totalidade).

Mas nas cidades modernas, baseadas na pura arte abstrata senão no próprio interesse de tornar as coisas propositalmente feias, não podemos experimentar esta naturalidade do ser. Tudo é objeto e sujeito. Vejo um livro, um prédio, uma placa, e vejo assim coisas diferentes de mim mesmo, vejo um “outro” fora de mim. Apesar de que estes objetos estão sujeitos às mesmas leis naturais que eu, se deterioram e se transformam e a cada momento “deixam de ser” eles mesmos como as coisas naturais, apesar disso eles se apresentam a mim representando um outro ser, alheio a mim. A placa é a placa, não tenho nada a ver com ela. E isto se intensifica pelo fato de que a placa tem um dono, que não sou eu, e propagandeia uma empresa que pertence a outra pessoa. Assim, tudo é analisável (paradigma analítico), tudo está objetificado, por mais que fundamentalmente a realidade seja distinta e tudo isso não passe de mera abstração e convenção. Fundamentalmente não houve alteração no ser; mas a arte (técnica), representando, engana, e mantém assim presa e escravizada toda uma civilização: escravizada por uma mera convenção, uma ilusão (a enganação pelo jogo de espelhos, orquestrada por uma figura diabólica nas mitologias). Desse modo, enquanto o mundo é objetificado, o homem é subjetificado, distanciado do mundo e abandonado às contingências da sua própria “interioridade”, de seu próprio nada. Nestas condições, fica difícil até mesmo para o homem experimentar a beleza em alguma coisa.

A feiura se caracteriza, então, por esta pobreza, este vazio, mas um vazio positivo que se opõe à natureza e por isso provoca angústia. As dores, os deveres e os prazeres do mundo moderno se dirigem sempre ao sujeito dentro do paradigma sujeito-objeto: o homem vai a uma festa para caçar um prazer que está solto no ambiente, ele tem compromisso profissionais que lhe oprimem enquanto uma individualidade que possui obrigações independentes e isoladas do resto do mundo. Desse modo, até os prazeres causam angústia, pois se não trazem o fenômeno à sua morada não servem de nada.

A Beleza

A beleza, pelo contrário, desvela uma identidade eterna entre o que vê e o visto. Em um nível sensível, ela instiga a imaginação e a criatividade a galgar e se elevar até entrar na coisa vista juntamente com aquele que o vê – neste estado, ela provoca a contemplação das ideias eternas e a meditação profunda. O homem finalmente se vê sentado em sua morada. Uma pintura é bela porque cada uma das partes que compõem o todo estão entrelaçadas e perfeitamente de acordo na economia do quadro, refletindo a sutileza das leis naturais – a percepção desta totalidade faz o contemplador sair de si para experimentar a essência do próprio ser, que é total e orgânico.

A beleza não é mera estética, já afirmamos que é uma experiência mística. A totalidade no visto é a que o sujeito carrega dentro de si e a que permeia o ser. Um quadro, todavia, ainda é uma arte, e representa, mais ou menos conforme a habilidade do pintor, uma ordem que está no mundo – sua representação é rude e bastante grosseira, a fim de explicitar mais claramente uma harmonia que na natureza vive de modo muito mais sutil e de difícil apreensão ao homem das cidades. Não obstante, a harmonia da natureza é muito mais rica; enquanto o quadro pode ainda ser cortado, repartido, suas pinceladas podem ser distinguidas, no mundo natural a harmonia é indivisível em absoluto, e a relação das “partes” dela entre si é imensurável. Por este mesmo motivo, a contemplação da natureza é interminável e inesgotável – a cada instante da contemplação se sabe tudo, se tem a certeza sábia, mas ao mesmo tempo é como se se apreendesse algo de novo, uma nuance nova, uma perspectiva nova.

A apreensão do belo não é, sendo uma experiência mística, oriunda de um impulso voluntário do homem de sair de si, como creem as fantásticas bobagens dos adeptos da Nova Era (New Age), que se sentam uma hora por semana para se conectar com o sol. Pelo contrário, é uma experiência espontânea, não forçada, livre do atento observador, portanto destituído de quaisquer interesses e preconceitos na sua observação. A experiência simplesmente acontece; a participação do homem é somente a de proporcionar as condições, vivendo em um ambiente belo, por um lado, e, por outro, mantendo-se limpo dos interesses. Só uma tal alma, que não espera abarcar a experiência em qualquer noção preconcebida, e dizemos dessa alma que é inocente, é capaz de observar a totalidade que o ser dispõe em seus ínfimos detalhes inesperados – caso a alma não se mantiver limpa dessa maneira, não apreenderá nada de inesperado, e o que é inesperado é justamente o que lhe falta e busca.

Até aqui falamos da apreensão do belo. Mas o que é o belo? É a própria economia do ser em seu estado natural, que é uma relação cognitiva da totalidade consigo mesma (o real é múltiplo de relações, não sendo ele uma coisa ou um conjunto de coisas que se relacionam, pois é as próprias relações). O princípio mais perfeito para a produção das formas acidentais é o ser e a alma do mundo – esta produção chama-se phýsis, natureza, uma vida eterna que está sempre produzindo a si mesma. Nada tem tal domínio sobre a harmonia das formas além dela mesma – portanto, nenhum ente, nenhum artista no mundo, para o qual o ser aparece parcial e não totalmente em seu princípio.

O belo é essa agradabilidade cognitiva que constitui a experiência imediata das partes entre si, para as quais a harmonia do todo é sua própria morada. As cidades modernas obstruem essa harmonia fluida, que é obrigada a contorná-las tal como uma planta contorna um muro, uma calçada e um asfalto. O contorno é sempre feito com sucesso, pois não há nada que possa impedir o ser de ser ele mesmo em sua atividade harmônica em sua totalidade, mas esse contorno, que é uma espécie de atraso, de obstrução da harmonia, gera a dor. A falta da imediatez, que a mediação pela arte consegue criar, é uma constante obstrução no fluxo da natureza, e essa obstrução joga os fenômeno uns contra os outros, como indivíduos isolados pela mediação, que faz lidar com o mundo como um “outro” – isso, por sua vez, desaloja a todos de sua morada que é a experiência da totalidade imediata com o fluxo total da phýsis.

Toda arte é uma mediação, e toda mediação é limitação. E toda limitação é como o impedimento de comer daquele que está faminto. Os fenômenos são todos famintos pela totalidade – na imediatez, eles são transmutados e se identificam ao ser, mas na mediação eles permanecem isolados e carentes de seu fundamento, motivo que os faz decair imparavelmente na busca desenfreada deste fundamento através de uma contínua complexificação da atividade representativa. Eles tentam provar o ser, ou então recriá-lo em imagens, sem contudo alcançar seu objetivo, aprofundando ainda mais sua carência e limitação.

Enquanto a phýsis é um universo de relações que se anulam no todo harmônico, a técnica cria neste universo um corte nas relações, dando nomes a estes entes delimitados pelo corte, dividindo o universo indivisível, assim, artificialmente em átomos, em elementos constituintes de um conjunto maior. O universo, assim, passa a ser considerado este conjunto de elementos, e a sagrada fórmula platônica do “todo ser maior do que a soma das partes” é substituída pela concepção de que o todo é o próprio conjunto das partes e, não só isso, mas o todo é em si definido qualitativamente pela natureza dos seus elementos, que se fundamenta na separação do indivisível. O todo, antes ele mesmo concebido como átomo (indivisível), é subjugado a um significado diametralmente oposto, que é o de ser constituído por átomos fundamentais, agora na qualidade de elementos. Dessa forma, a diferença entre a concepção holística e a técnica não é meramente uma mudança de perspectiva, mas de natureza, trata-se de uma alteração qualitativa na ontologia, e ambas, por este motivo, não podem conviver no mesmo mundo em respeito e tolerância mútua, pois uma nega a outra. De um lado, as relações puras, que negam em sua fluidez qualquer concepção de substância, de outro, as substâncias ou elementos, que resistem contra as relações e se definem pela negação delas, uma vez que a substância é algo completo, inteiro e independente (subsistente, por si).

Quanto à disputa pela verdade destas duas doutrinas a própria história humana é testemunha; e quanto à verdade de uma ou de outra, fica nítido por nossa própria reflexão que a visão-de-mundo da técnica é uma perversão da natureza, uma vez que ela se apropria desta última para existir, como um parasita do ser. Enquanto a phýsis demonstra ser o real inefável, a técnica busca dizê-lo e, ao fazê-lo, introduz um sentido particular e desviado, meramente abstrato e representativo de um real que já é, a priori.

A beleza é um evento só possível pela realidade das relações puras. No interior da fluidez, tudo está como que para o todo e tudo é como deve ser, e tudo deve ser como é; este “ajuste perfeito” do todo é sentido como um prazer absoluto para este todo ao qual nada lhe falta. E sendo deleitável é belo e bom; não há carência, portanto não há uma ausência de sentimento do bem, logo não há o sentimento do feio, que é uma carência e, por isso, causa angústia e sentimento de vazio. Pelo contrário, o que o todo precisa e quer, assim o tem, e isto só acontece porque as relações internas são absolutas, ao ponto de não se distinguir nele átomos, porque se houvessem átomos seriam eles impedimentos, barreiras que resistem contra as relações, como pedras no mar que se opõem ao fluxo perfeito e suave das águas. Mas não há esse atomismo na natureza, e até as pedras do mar a ele estão ligadas por um continuum, e se desgastam e se restituem interminavelmente e nunca são as mesmas pedras – o mar, assim, é o prolongamento das pedras, e estas são como que cristalizações do próprio mar. Não há pedras e não há mar, há um todo “pedrar” ou “maredra”, a despeito da ilusão que cria a nossa linguagem.

A Unicidade

Nosso raciocínio até aqui sugere que, ao falarmos de beleza, acabamos necessariamente por investigar a natureza, a essência, do real. A experiência do belo não é a percepção de algo objetivo e fechado em si mesmo, nem um sentimento subjetivo capaz de ser delimitado pelo pensamento, mas a própria natureza da existência e do real enquanto tais. O modo de ser do real é a beleza, e deste real nós participamos sem abarcá-lo, mas como que banhados e mergulhados na sua essência, uma vez que dele somos feitos e tudo com que nós nos relacionamos também é.

É impossível, portanto, buscar a beleza em si. Ela é o modo de ser de algo, não um algo específico. Ela é o evento, o ato deste algo que é o real – e o real, sendo existência, é um evento, não uma coisa em si delimitada substancialmente, como queria Aristóteles. Assim, torna-se obsoleta a busca pela beleza diretamente, quando dela depende toda a realidade e a vida – busca-se o belo como o indivíduo desconsolado corre atrás de uma pílula anti-depressiva, sem notar que o remédio está no todo, logo em si mesmo também enquanto partícipe do todo.

O belo é manifesto acidentalmente, ele é o fenômeno do real. Para obtê-lo, deve se garantir o real, com sua harmonia indivisível. A busca cristã por um belo em si distanciou o homem do real e, consequentemente, do próprio belo; essa busca mira uma beleza abstrata, “o paraíso”, longe da terra, quando não há paraíso que não seja, para os seres vivos, este mundo aqui, onde nossa essência se encontra. Não estamos negando agora um estágio transcendente do ser; estamos apontando para o fato de que de um estágio transcendente só pertencemos enquanto a totalidade deste mundo “aqui e agora”, sendo impossível que hajam essências individuais como os peripatéticos imaginam das almas humanas e das coisas (substâncias).

Pois não há indivíduos, há tão somente um todo que se desenrola e se manifesta indefinível. A serenidade do belo não é como a do doente depois de beber uma pílula – mas acontece porque a totalidade em harmonia não se abate descontroladamente, mas está em uma total conveniência e satisfação: a energia não é perdida nem deslocada da sua rota, mas se direciona para onde deve ser recebida e cabe com perfeição; não faltando nem sobrando, assim, nada em lugar algum. É a unicidade que explica essa harmonia, a interrelação máxima do todo consigo mesmo, um todo que parece complexo e múltiplo sendo, não obstante, uma só realidade, um só evento.

Para “obter” o belo, não basta que criemos o espetáculo. Esta sede do espetáculo levou o Ocidente à modernidade, que hoje, já perdida e desiludida, não mais crê na existência do belo, simplesmente porque não o encontra onde o busca. Ao invés de buscá-lo no real, busca no abstrato, como se o belo fosse uma coisa criada e não a experiência do ser ele mesmo, a sutileza da realidade e da vida misteriosa, a luz do sol que penetra as nuvens ao longe e se dissolve muito gradualmente no vapor do aro pouco acima do chão, o desenho multicolor e terrivelmente detalhado de asas de borboleta, o olhar iluminado, suavemente adocicado e muito sutil e cuidadosamente desenhado da mulher da nossa vida. O belo está na ordem perfeita dos fenômenos, impossível de ser ultrapassada e vencida pelo gênio humano – eis o mistério! Que tipo de genialidade é essa que a tudo produz com tal maestria e permanece oculto, apenas se mostrando através da própria beleza daquilo que produz? O meio de se ir o mais longe em qualquer tipo de busca é a observação dessa ordem misteriosa, que não nos torna o gênio produtor das coisas que são, mas nos faz compreender tudo o que a nós está para ser compreendido. Aí nos tornamos também deuses plenificados e eternos, superiores a toda contingência e a toda imagem como o são a vida e a morte.

A Religião

Falar do belo e não falar de religião, ou em alguma tonalidade religiosa, é simplesmente não falar o que deve ser dito. A experiência do real, tanto o do real por si quanto a nossa do real (a diferença das duas é ilusória: o real sem nós não pode ser, e nossa experiência do real só é através da união, de uma espécie de misticismo, em que não existe mais o eu, mas o todo), é uma que exige um comprometimento existencial – não é um passa-tempo, não é entretenimento, não pode ser experimentado agora por alguns minutos para espantar o tédio. Pelo contrário, trata-se de uma missão pessoal, de uma entrega de si mesmo, de uma suspensão de tudo que pode ser considerado “preocupação cotidiana”, porque o real antecede as abstrações que inventamos e com as quais lidamos, por exemplo, o contrato de emprego e a televisão no mundo moderno, que se propõem atividades laicas, desligadas de todo compromisso.

No mundo antigo, sobretudo oriental, todas as atividades pertenciam aos rituais, e todas elas, portanto, voltadas para as necessidades vitais da natureza das coisas, como a alimentação e o sono. São atividades dadas pelo ser, não são construções sociais – portanto, há que lembrar sua relação com o todo, sua participação no universo, sua importância. Ao comer e ao dormir, a oração aos deuses, ao arar a terra, plantar e colher também, que são atividades relacionadas umas com as outras tanto quanto à nossa de comer e de dormir; e se não é pelo favor dos deuses nada disso seria possível, e o universo como um todo ordenado jamais existiria. O conjunto de todos esses fenômenos, assim ordenados, em meio a um mundo de belezas sublimes, é um mistério; estamos dentro e somos partes indissociáveis desse espetáculo natural que a todo instante é concebido pelos deuses; e os deuses estão por todos os lados, e se não é uma deusa a araucária que se ergue imponente no inverno o que é então?

Para o mundo moderno, a alimentação é pura contingência, resultado aleatório de uma evolução biológica, e é por isso que somos obrigados a comer hoje correndo, enfiar goela abaixo uma porcaria qualquer vendida na rua para não perdermos a energia diária necessária para o trabalho escravo em uma empresa inútil que só fabrica coisas inúteis para as grandes e pútridas massas humanas consumirem como animais egoístas e ambiciosos. Permanece a questão de Heidegger: para quê? Para onde? O mundo moderno não está interessado na realidade, está tão interessado nas ambições que esquece que a única satisfação possível está na experiência do real, que é holística, o oposto da ambição individualista, parcial, especializada, que move o eternamente inquieto e insatisfeito mundo moderno. O mundo moderno instrumentaliza o real em benefício do sujeito, que os modernos, em sua leviandade, sequer suspeitam que não passa de ilusão abstrata e que nada em comum com a realidade possui. O sujeito é mera representação, delimitação parcial de uma experiência que não cabe em representações – e assim mesmo, nestas condições a visão-de-mundo atomista, que está na base do conceito de sujeito (e de objeto), serve de fundamento para a metafísica moderna.

Falamos da alimentação, mas ela é só um exemplo para se notar a distância entre o real e a concepção moderna, para se notar como a vida como um todo é um fenômeno constante e contínuo do misterioso real e como o mundo moderno trata de apagar e destruir essa harmonia, usá-la para fins abstratos e, desse modo, desequilibrá-la e desorientá-la e, tirando-a de sua natureza, desfazê-la em seu fundamento. Mesmo assim, o real permanece, enquanto o mundo moderno se exclui ele próprio do real, ao menos tenta assim fazer, dominando o real; mas o real é indomável, e é o mundo moderno que se joga para o abismo, tal como o primeiro, pairando no céu estável, apenas observa o segundo se debater na terra, insensato, permanentemente instável e insatisfeito, tanto quanto ignorante sobre o que é a verdade ela mesma.

Quando falamos de religião, não queremos dizer “o cristianismo”, “o budismo”, “o judaísmo” etc., estamos falando de uma experiência própria do real, da admiração das sutilezas, do desafio da morte, portanto da vivência demorada e introspectiva de cada atividade vital das nossas vidas, que participam do real e que são o modo como dele participamos. A religião é o conhecimento por contato que os filósofos buscam desde Platão, sem jamais atingir, pelo simples fato de que se trata de um acontecimento imediato, por fora de todo esforço para alcançar alguma razão ou resultado em uma mera calculação lógica e linguística. Esse conhecimento é a própria experiência profunda e imediata que o homem tem com o mundo, o próprio ato de viver os limites da existência, de encontrar o infinito inabarcável pela linguagem. É como o andar do filósofo, já citado em outro lugar, que refuta, andando silenciosamente, o paradoxo de Zenão.

A decadência humana e a consequente inquietude do “progresso” histórico das civilizações, que vive buscando na “tese, antítese e síntese” essa experiência inefável, cada vez mais desesperadamente, pois cada vez mais afastada dessa experiência, levou o imaginário a supor uma Elêusis, o paraíso onde se encontram aqueles que lograram alcançar esse conhecimento, já reservado a poucos em meio ao caos. Em Elêusis se encontram os heróis, os sábios e justos, ou seja, aqueles que compreenderam a amplitude e a necessidade da moral, que não se restringe ao moralismo das leis, mas ao compromisso daquele que assume sobre si a própria existência como uma missão em aberto – a moral independe das leis, e até mesmo se opõe a elas; a moral, como diriam Platão e os neoplatônicos, é o meio pelo qual o homem limpa de si e do seu caminho todo o supérfluo, a fim de contemplar a luz da verdade, isto é, conhecer o ser, unir-se a ele.

A moral surge, então, como um meio de resgatar a experiência perdida, ou seja, de re-ligar-se à harmonia, por isso não se pode falar de religião sem moralidade. Mas uma coisa é a moralidade das antigas religiões, tradicionais, cujos mitos trazem à luz sua amplitude, seus motivos, hoje preservados nos contos de fadas e em boa parte da literatura clássica, e bem outra é o moralismo das leis que outorga o que se deve ou não fazer, cuja preocupação não é mais o conhecimento, mas a mera organização ou imposição de um modelo social, sem raízes na existência humana. É por isso que, revoltado contra este moralismo, surge o romantismo, com Cervantes, Goethe, Schiller, que reabrem aos homens a possibilidade do rebentar-se nos limites da experiência, não sem uma intensa preocupação moral, que seus personagens, personificando tendências humanas, manifestam com muita profundidade psicológica.

E, tanto nas religiões quanto no romantismo, a preocupação com a moralidade acompanha a experimentação da beleza, porque é ela mesma a manifestação deste conhecimento por contato do ser, alcançado por um rebento e uma força místicos. Porque o reino dos céus é dos violentos, já dizia o Cristo. Conhecer, assim, é estar unido ao todo uno, a experiência da unicidade e harmonia perfeita e bem ordenada de tudo que é; mas o que nossos antepassados possuíam por natureza nós, hoje, mergulhados no logocentrismo[1], temos que conquistar de volta, rompendo o ciclo vicioso da lógica sem, no entanto, cair no irracionalismo.

Independentemente do que a beleza é “em si”, nós só a percebemos enquanto um acontecimento iluminado, absoluto, que toma todo o nosso ser e o mundo em um turbilhão de agradabilidade pura. A beleza só é experimentada como um mergulho na essência do ser, para muito longe da alternância entre vida e morte concebidas como reinos separados. O belo é o limite, e o belo é a vida suprema e por isso mesma a experiência da morte, o limite máximo da existência. E o que é o Logos senão essa harmonia do ser manifesta no continuum, onde todos os contrários permanecem unidos na experiência da totalidade, como que fundidos e suspensos na inefabilidade; e o que é essa experiência senão o ser ele mesmo, que experiencia a si mesmo?

O belo é uma experiência, e esta é a phýsis, que não é outra coisa que a própria produção harmônica e eterna de tudo o que é, ou seja, a Natureza em sua totalidade, atividade e presença. A linguagem, quando destituída de sua essência mística, é pura técnica, arte abstrata e representação – e deste modo ela distancia e separa regiões do ser pre-determinadas pela abstração, pondo-se entre o sujeito e o objeto, criando um medium que em verdade é a obstrução da imediatez essencial do conhecimento por contato. E é daí que vem novamente à mente a teoria da verdade por correspondência aristotélica, fundamentada na separação, cujo paradigma é o da representação abstrata. Verdade por correspondência, princípio de não-contradição e o conceito de substância estão intrinsecamente interligados, um implicando os outros – todos fundamentados na ideia de separação abstrata, em total dissonância com a realidade: o continuum e a unicidade.

[1] Logocentrismo: termo visto em textos duguinianos, cujo significado se aproxima muito do nosso paradigma aristotélico, sobre o qual discutimos em Do Paradigma Moderno e do Tradicional,e da Linguagem. O logocentrismo significa o modelo de pensamento ocidental imposto por Aristóteles e que reina imparável pós-modernidade adentro, cujo fundamento é a lógica. Vimos Dugin discutir em termos muito próximos dos nossos sobre a separação, caráter da lógica e do logocentrismo, em textos ainda não traduzidos ao português e, quiçá também, nem ao inglês. Surpreendentemente ou não, suas afirmações partem de um estudo atencioso sobre o neoplatonismo, como é o nosso caso.

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